Portugal e o Direito do Mar
Enquadramento histórico
Ao longo dos séculos, Portugal teve um papel importante na formação de regras aplicáveis ao espaço marítimo,[1] desde a aprovação de legislação para combater o ius naufragii (1220 ou 1223),[2] à salvaguarda dos direitos de navegação de Portugal e, em conexão com estes, dos direitos relativos a trocas comerciais. São exemplo da marcante atuação de Portugal nesse âmbito, desde logo, a celebração dos tratados das Alcáçovas-Toledo (1480) e de Tordesilhas (1494).
Igualmente digna de menção é a intervenção do Frei Serafim de Freitas (1570-1633), com a publicação da sua relevante obra De Iusto Imperio Lusitanorum Asiático (1625), na qual defendia os interesses de Portugal, e que foi publicada em resposta à obra de Hugo Grotius (1583-1645), De Mare Liberum (1609), que propunha a liberdade de navegação no alto-mar a navios de todas as nações.[3] Importa, ainda, recordar que também fizeram parte desse debate John Selden (1584-1654), com a obra Mare Clausum (1635), e Cornelis van Bijnkershoek (1673- 1743), com a De Dominio Maris Dissertatio (1702).[4]
Para além do expoente alcançado durante a era dos Descobrimentos, Portugal também granjeou relevo internacional enquanto potência colonial, de que é exemplo a intervenção do Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles perante o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), enquanto advogado principal de Portugal, no caso que opôs Portugal à então União Indiana,[5] designado como o Caso sobre o Direito de Passagem sobre o Território Indiano.[6] Este julgamento constituiu um marco do Direito Internacional Público, no que respeita ao reconhecimento de um costume formado apenas por dois Estados e vinculando somente estes.[7]
Já na segunda metade do século XX, outro acontecimento marcante é o caso de Timor Leste,[8] iniciado por Portugal contra a Austrália, ainda que o TIJ tenha entendido que não podia exercer a sua jurisdição,[9] e no qual intervieram, como advogados principais de Portugal, o Professor Doutor José Manuel Sérvulo Correia e o Dr. Miguel Galvão Teles.
Importa recordar que o caso Timor Leste é iniciado por Portugal em reação à celebração entre a Austrália e a Indonésia de um acordo de aproveitamento conjunto (tratado Timor Gap), a 11 de dezembro de 1989,[10] o qual violava os direitos de autodeterminação, à integridade territorial e de soberania permanente sobre os recursos naturais do povo de Timor Leste, assim como os deveres, poderes e direitos de Portugal enquanto potência administrante, dando lugar, na perspetiva portuguesa, à responsabilidade internacional da Austrália.[11]
Já com a entrada em vigor da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM),[12] Portugal tem vindo a assumir, progressivamente, uma importância cada vez maior na liderança das questões relativas à governação do oceano, seja no âmbito da codificação do Direito do Mar, como é o caso das negociações relativas a um novo acordo de implementação da CNUDM sobre a conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha de áreas além da jurisdição nacional, cuja conclusão está prevista para 2022/23,[13] seja na promoção, a nível mundial, de medidas que permitam enfrentar os principais desafios que o oceano enfrenta. É o caso da coorganização com o Quénia da IIª Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, em Lisboa, de 27 de junho a 1 de julho de 2022, que tem como propósito incentivar o cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n.º 14, dedicado à proteção da vida marinha na Agenda 2030 das Nações Unidas.[14]
O ensino do Direito do Mar em Portugal
Embora Portugal tenha tido um papel relevante ao longo dos séculos para a formação do Direito do Mar, o ensino e a investigação em Portugal dedicados a esta área do conhecimento não têm sido muito significativos, sem prejuízo, evidentemente, da elevada qualidade que é internacionalmente reconhecida aos trabalhos publicados por diversos autores portugueses, dentro e fora de Portugal.
No panorama nacional, para além da influência de Carlos Testa (1823-1891) e de Vicente Almeida d’Eça (1852-1929), ambos professores da Escola Naval, e considerados “os fundadores do estudo do Direito do Mar em Portugal”,[15] assim como de José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães (1879-1959),[16] que representou Portugal na Conferência para a Codificação do Direito Internacional, realizada em 1930, em Haia, e foi membro da Comissão de Técnicos da Sociedade das Nações para a codificação do Direito Marítimo Internacional;[17] o ensino e a doutrina de Direito do Mar são fundamentalmente marcados pelas notáveis lições do Professor Doutor Armando M. Marques Guedes (1919-2012).[18]
Não é, por isso, surpreendente que muitos dos que hoje desenvolvem a sua atividade de investigação no Direito do Mar tenham sido alunos do Professor Doutor Marques Guedes e lhe reconheçam o papel inestimável que teve, sendo considerado, por isso, e justamente, “o “pai fundador” do estudo universitário do Direito do Mar” em Portugal.[19]
Na esteira do papel decisivo que o Professor Doutor Armando M. Marques Guedes desempenhou para o ensino do Direito do Mar em Portugal, nos últimos anos tem-se assistido à abertura de vários cursos nesse domínio, muitos dos quais conducentes à obtenção de grau académico. Dentre esses, incluem-se ações de formação avançada, pós-graduações, mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos, dos quais resultaram a preparação e, em alguns casos, a publicação de importantes trabalhos, relatórios, dissertações e teses.
Com efeito, nos últimos anos tem-se assistido a um incremento da procura de cursos sobre Direito do Mar por parte de alunos portugueses e estrangeiros, sendo hoje internacionalmente reconhecido o importante contributo das Universidades portuguesas para o ensino e a investigação nesse domínio.
Igualmente decisivo para o gradual interesse pelo Direito do Mar em Portugal, foram o desenvolvimento e a concretização de relevantes iniciativas políticas e legislativas, das quais se destacam o processo de extensão da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas (M), cuja proposta foi submetida a 11 de junho de 2009,[20] assim como a entrada em vigor da legislação sobre o ordenamento e a gestão do espaço marítimo nacional, para além da classificação de um crescente número de áreas marinhas protegidas (AMP), incluindo em áreas para além da jurisdição nacional,[21] como é o caso do campo hidrotermal Rainbow, estabelecido no âmbito da Convenção OSPAR,[22] e que foi a primeira AMP a nível mundial além das 200M.[23]
Veja-se, por exemplo, que com a entrada em vigor da Lei n.º 17/2014, de 10 de abril, que estabelece as bases da política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional, e do Decreto-Lei n.º 38/2015, de 12 de março, que a desenvolve,[24] o próprio conceito de ‘espaço marítimo’ é alterado para incluir a plataforma continental para além das 200M, passando a designar-se de ‘espaço marítimo nacional’.[25]
A inclusão no espaço marítimo nacional de todo o espaço marítimo relativamente ao qual Portugal exerce direitos de soberania e de jurisdição, suscita um conjunto muito significativo de desafios e questões legais, alguns dos quais têm sido objeto de estudo e investigação, ainda que, de momento, não existam atividades (económicas ou relativas ao aproveitamento de recursos naturais marinhos, em particular não vivos) na plataforma continental estendida. De certa maneira, com a entrada em vigor do regime sobre o ordenamento e a gestão do espaço marítimo nacional, a realidade jurídica antecipou-se à realidade económica.[26]
Sem prejuízo, os desafios e questões legais suscitados com a integração da plataforma continental estendida no conceito de espaço marítimo nacional prendem-se, fundamentalmente, com a interação entre os regimes jurídicos aplicados aos espaços marítimos sujeitos à jurisdição nacional dos Estados costeiros e os que estão além desta. Essa problemática tem ganho especial importância nos últimos anos, devido à negociação de um novo acordo de implementação da CNUDM sobre a conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha de áreas além da jurisdição nacional.[27]
Cabe ainda mencionar outros marcos significativos, como a Portaria n.º 114/2014, de 28 de maio, que visa proteger a biodiversidade, os ecossistemas marinhos vulneráveis e outros valores naturais, e os fundos marinhos, incluindo para além das 200M, dos impactos adversos da atividade da pesca; assim como, a elaboração, implementação e monitorização dos programas de monitorização e de medidas aplicáveis à plataforma continental para além das 200M,[28] no âmbito da Diretiva n.º 2008/56/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho, designada por Diretiva Quadro «Estratégia Marinha», transposta pelo Decreto-Lei n.º 108/2010, de 13 de outubro.[29]
Assim, pese embora o ensino e a investigação dedicados ao Direito do Mar ainda tenham muito espaço para crescer em Portugal, a perspetiva é fracamente otimista, na medida em que nos últimos anos têm-se verificado um maior interesse e procura por ações de formação, bem como um crescimento de importantes publicações, como acontece com o primeiro comentário, em língua portuguesa, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, cujo lançamento está previsto para 2022.
Este crescente interesse pelo Direito do Mar deve-se, em parte, à reputação nacional e internacional de algumas iniciativas já existentes em Portugal ao nível do estudo e da investigação, assim como ao desenvolvimento e à concretização de relevantes iniciativas políticas e legislativas no domínio do Direito do Mar (internacional e interno).[30]
Vasco Becker-Weinberg
Revista Negócios Estrangeiros, 2022